terça-feira, 25 de outubro de 2016

III. Sagrado Xamanismo

O XAMANISMO ENQUANTO CULTO ESPIRITUAL

Xamanismo não é religioso no sentido doutrinário, mas o é no sentido "religare" (religação com o Sagrado), e é espiritual, quanto a isso não se discute.

Decidi passar a utilizar o conceito de Sagrado Xamanismo a tudo o que se referisse ao Xamanismo de forma religiosa-espiritual, para evitar confusões com outras conotações com que ele vem sendo difundido na atualidade.


Este conceito, por sua vez, traz a consciência do Xamanismo como uma prática SAGRADA, ou seja, religiosa-espiritual, Xamanismo não é Terapia (embora aja também de forma terapêutica, assim como outras religiões e cultos) e nem deve ser mercantilizado. Assim como fazem nossos irmãos de centros de Umbanda e Kardecistas prestamos atendimentos de cura e amparo espiritual a nossa comunidade, assim também como os Pajés atendem os irmãos de suas respectivas tribos.

O Xamanista é um curador, um professor e amigo que deve ter consigo a responsabilidade de utilizar seus dons em benefício de sua comunidade, especialmente aqueles que possuem intenção de assumirem um caminho de medicina (sacerdócio de Xamanismo), assim como faziam os nossos ancestrais.

Através de práticas consideradas Xamânicas como rezos, benzimentos, passes, limpezas e descarregos utilizando-se de ervas, defumações, danças, cantos e rituais anímicos e cerimoniais magísticos o Xamanista, ou o Xamã presta seu atendimento aos irmãos de sua comunidade que buscam auxílio espiritual, emocional, medicinal e até mesmo para seu próprio desenvolvimento como pessoa no dia-a-dia ou dentro do caminho do Xamanismo.

Muitos "centros" hoje que se auto denominam Xamânicos atuam de forma deslegitima estabelecendo preços muitas vezes até mesmo exorbitantes para a execução de seus serviços que deveriam ser serviços exclusivamente espirituais, mas o problema que já elitiza uma cultura que possui como princípios a simplicidade, a humildade e a irmandade, e exclui socialmente as classes mais baixas, ainda incorre no risco de apropriação da cultura indígena e ancestral para obter lucros, jogando as minorias étnicas para escanteio, que acabam "colonizadas pelo poder econômico" como avaliou Cosmo de Souza, Daimista e Procurador do Estado do Acre na última Conferência Mundial da Ayahuasca realizada recentemente.

O atual desequilíbrio econômico em torno do Xamanismo vai além dos "centros" servidores de Ayahuasca/Daime, mas também abrange a outras linhas de trabalho que dão atendimentos com técnicas de pajelança, benzimentos e outras cobrando dos atendidos. Os próprios líderes espirituais indígenas de algumas regiões têm sido vítimas do sistema capitalista fazendo parte muitas vezes desses "comércios" disfarçados, com o objetivo de obterem auxílio econômico para seu povo que geralmente é carente, e até mesmo para enriquecer, esquecendo do seu povo, como já houveram relatos por aí. Por este motivo, é essencial também aos que praticam o Xamanismo dentro dos princípios da caridade espiritual que participem de políticas e outras atividades voluntárias a fim de prestarem apoio às comunidades de povos indígenas, que são os verdadeiros detentores das sabedorias antigas.

É sabido que em tempos muito remotos onde prevalecia o escambo (troca) e não a moeda em si, era comum que os Pajés/Xamãs recebessem presentes de seus atendidos, como tabaco, mantos, ervas, pedras e outros elementos, e também alimentos e vestimentas para sua própria subsistência, uma vez que estes não possuíam outro ofício de vida, senão o de curar e amparar, ao qual dedicam a totalidade de suas vidas, como os monges, que vivem de mendicância. Hoje, além de não haver mais sistema de escambo (o que acabava dando às coisas valores mais justos) e nossa economia ser totalmente capitalista e nada meritocrática, ou seja, ninguém recebe proporcionalmente ao trabalho que executa, as pessoas que estão na dirigência de muitos núcleos auto denominados Xamânicos querem viver vidas normais com seus confortos e luxos, mais do que mantendo suas casas "espirituais" (ou terapêuticas) recebendo um "salário" que provém do sacrifício daqueles que precisam de amparo, que geralmente são pessoas que chegam quase sempre debilitadas, frágeis e em desequilíbrio e encontram nesses espaços a última esperança nos quais depositam muitas vezes um dinheiro que não possuem realmente, vulgarmente chamados de "contribuição", "energia de troca" e outros tipos de disfarces que não têm nada de espontâneo e são taxativos em sua cobrança. Assim o irmão que chega ao Xamanismo cai na mesma armadilha em que caem fiéis de grandes Igrejas Evangélicas que aliciam mentalmente as pessoas em sua fragilidade em troca de dinheiro, o que deveria ser considerado um crime de extorsão, já que é sim um ato de violência (psicológica) se valer do desespero de um irmão para obter lucro.

Como resultado há ainda uma publicidade cruel em cima do modismo "Nova Era" que demanda uma "overdose" de cursos com caráter de formação nas tradições Xamânicas, colocando em postos de confiança pessoas muitas vezes despreparadas para lidar com problemas psíquicos e espirituais que veem nesta demanda uma oportunidade de ganhar dinheiro e acabam colocando a vida e a sanidade mental dos mais fragilizados em risco.

Não existe curso que ofereça a uma pessoa o dom de uma missão de vida, isto é algo que vêm de dentro para fora, e as pessoas do meio urbano, principalmente, que vivem na ansiedade capitalista não conseguem acompanhar o "tempo" da espiritualidade, que nos desperta para os nossos dons conforme o nosso merecimento. O homem capitalista pensa que tudo pode comprar com dinheiro.

Xamanismo não é religioso no sentido doutrinário, mas o é no sentido "religare" (religação com o Sagrado), e é espiritual, quanto a isso não se discute. Há ainda uma regulamentação legal para o uso do sacramento Ayahuasca estritamente religioso, que proíbe a cobrança e o comércio do atendimento com a bebida, que infelizmente têm sido ignorada e omitida de forma escancarada por muitos que se dizem Mestres, Padrinhos e Dirigentes. Isto é pouco falado nas mídias e o assunto tem sido levantado "a passos de tartaruga", por isso nem todas as pessoas possuem conhecimento de tal regulamentação.


Segue disposições sobre comércio, sustentabilidade, turismo, publicidade, uso terapêutico e organização dos "centros", respectivamente. Recomendo para os que se interessam a leitura completa da regulamentação no link mais adiante, ou pelo menos as partes em negrito que tratam do tema em foco.



"IV.II - COMERCIALIZAÇÃO 
25. O GMT reconhece o caráter religioso de todos os atos que envolvem a Ayahuasca, desde a coleta das plantas e seu preparo, até seu armazenamento e ministração, de modo que seu praticante de tudo participa com a convicção de que pratica ato de fé e não de comércio. Daí decorre que o plantio, o preparo e a ministração com o fim de auferir lucro é incompatível com o uso religioso que as entidades reconhecem como legítimo e responsável. 
26. Quem vende Ayahuasca não pratica ato de fé, mas de comércio, o que contradiz e avilta a legitimidade do uso tradicional consagrado pelas entidades religiosas. 
27. A vedação da comercialização da Ayahuasca não se confunde com seu custeio, com pagamento das despesas que envolvem a coleta das plantas, seu transporte e o preparo. Tais custos de manutenção, conforme seja o seu modo de organização estatutária, são suportados pela comunidade usuária. E é evidente, também, que a produção da Ayahuasca tem um custo, que pode variar de acordo com a região que a produz, a quantidade de adeptos, a maior ou menor facilidade com que se adquire a matéria prima (cipó e folha), se se trata de plantio da própria entidade ou se as plantas são obtidas na floresta nativa, e tantas outras variáveis. 
28. Historicamente, porém, de acordo com a experiência das entidades religiosas chamadas a compor o Grupo Multidisciplinar de Trabalho, esse custo é partilhado no seio da instituição por meio das contribuições dos membros de cada entidade. Os sócios respondem pelas despesas de manutenção da organização religiosa, nas quais estão incluídos os gastos com a produção da Ayahuasca, com prestação de contas regular. 
29. O uso religioso responsável na produção da Ayahuasca é delineado a partir da constatação das práticas das entidades: a) cultivar as plantas e preparar a Ayahuasca, em princípio, para seu próprio consumo; b) buscar a sustentabilidade na produção das espécies; e, c) quando não possuir cultivo próprio e nenhuma forma de obtenção da matéria prima na floresta nativa - sem prejuízo de buscar a auto-suficiência em prazo razoável - nada obsta obter o chá mediante custeio das despesas tão somente, evitando-se que pessoas, grupos ou entidades se dediquem, com exclusividade ou majoritariamente, ao fornecimento a terceiros. 
IV.III - SUSTENTABILIDADE DA PRODUÇÃO DA AYAHUASCA 
30. A cultura do uso religioso da Ayahuasca, por se tratar de fé baseada em bebida extraída de plantas nativas da Floresta Amazônica, pressupõe responsabilidade ambiental na extração das espécies. As entidades religiosas devem buscar a auto-sustentabilidade na produção da bebida, cultivando o seu próprio plantio. 
IV.IV - TURISMO 
31. Turismo, como atividade comercial, deve ser evitado pelas entidades, que por se constituírem em instituições religiosas, não devem se orientar pela obtenção de lucro, principalmente decorrente da exploração dos efeitos da bebida. 
32. A Constituição Federal garante o livre exercício dos cultos religiosos, que tem como conseqüência o direito à propagação da fé através do intercâmbio legitimo de seus membros. Neste sentido todos têm direito de professar a sua fé livremente e de promover eventos dentro dos limites legais estabelecidos. O que se quer evitar é que uma prática religiosa responsável, séria, legitimamente reconhecida pelo Estado, venha a se transformar, por força do uso descomprometido com princípios éticos, em mercantilismo de substância psicoativa, enriquecendo pessoas ou grupos, que encontram no argumento da fé apenas o escudo para práticas inadequadas. 
IV.V - DIFUSÃO DAS INFORMAÇÕES 
33. A publicidade da Ayahuasca também tem sido motivo de deturpações e abusos, notadamente na Internet. Observa-se, principalmente neste meio de comunicação, o oferecimento de toda espécie de cursos e oficinas remuneradas, cujo elemento central é o uso da Ayahuasca associado a promessas de experiências transformadoras descomprometidas com o ritual religioso. 
34. A partir das experiências das entidades e de suas práticas rituais, verifica-se que o uso ritual responsável é incompatível com a publicidade e a oferta de promessas de curas milagrosas, de transformações pessoais arrebatadoras e com a indução das pessoas a acreditarem que a Ayahuasca é o remédio para todos os males. É consenso no GMT que quem faz uso religioso responsável não divulga informações que possam induzir as pessoas a terem uma imagem fantasiosa da Ayahuasca e trata do tema com discrição, sem fazer alardes dos efeitos da substância. 
IV.VI - USO TERAPÊUTICO 
35. Para fins deste relatório "terapia" é compreendida como atividade ou processo destinado à cura, manutenção ou desenvolvimento da saúde, que leve em conta princípios éticos científicos. 
36. Tradicionalmente, algumas linhas possuem trabalhos de cura em que se faz uso da Ayahuasca, inseridos dentro do contexto da fé. O uso terapêutico que tradicionalmente se atribui à Ayahuasca dentro dos rituais religiosos não é terapia no sentido acima definido, constitui-se em ato de fé e, assim sendo, ao Estado não cabe intervir na conduta de pessoas, grupos ou entidades que fazem esse uso da bebida, em contexto estritamente religioso. Em outra condição se encontram aqueles que se utilizam da bebida fora do contexto religioso. Isto nada tem que ver com uso religioso, e tal prática não está reconhecida como legítima pelo CONAD, que se limitou a autorizar o uso da substância em rituais religiosos. 
37. A utilização terapêutica da Ayahuasca em atividade privativa de profissão regulamentada por lei dependerá da habilitação profissional e respaldo em pesquisas científicas, pois de outra forma haverá exercício ilegal de profissão ou prática profissional temerária. 
38. Qualquer prática que implique utilização de Ayahuasca com fins estritamente terapêuticos, quer seja da substância exclusivamente, quer seja de sua associação com outras substâncias ou práticas terapêuticas, deve ser vedada, até que se comprove sua eficiência por meio de pesquisas científicas realizadas por centros de pesquisa vinculados a instituições acadêmicas, obedecendo às metodologias científicas. Desse modo, o reconhecimento da legitimidade do uso terapêutico da Ayahuasca somente se dará após a conclusão de pesquisas que a comprovem. 
39. Com fundamento nos relatos dos representantes das entidades usuárias, verificou-se que as curas e soluções de problemas pessoais devem ser compreendidas no mesmo contexto religioso das demais religiões: enquanto atos de fé, sem relação necessária de causa e efeito entre uso da Ayahuasca e cura ou soluções de problemas. 
IV.VI - ORGANIZAÇÃO DAS ENTIDADES 
40. O crescimento do uso da Ayahuasca e a facilidade com que se pode comprar a bebida de pessoas que a produzem sem compromisso com a fé têm levado ao surgimento de novas entidades, que não possuem experiência no lidar com a bebida e seus efeitos, assim como fazem mau uso da Ayahuasca, associando-a a práticas que nada têm a ver com religião. O uso ritual caracterizado pela busca de uma identidade religiosa se diferencia do uso meramente recreativo. 
41. O uso religioso responsável da Ayahuasca pressupõe a presença de pessoas experientes, que saibam lidar com os diversos aspectos que envolvem essa prática, a saber: capacidade de identificar as espécies vegetais e de preparar a bebida, reconhecer o momento adequado de servi-la, discernir as pessoas a quem não se recomenda o uso, além de todos os aspectos ligados ao uso ritualístico, conforme sua orientação espiritual. 
42. Embora se reconheça o ato de fé solitário e isolado, usualmente a prática religiosa se desenvolve coletivamente. É recomendável que os grupos constituam-se em organizações formais, com personalidade jurídica, consolidando a ideia de responsabilidade, identidade e projeção social, que possibilite aos usuários a prática religiosa em ambiente de confiança." 

Leia a Resolução completa do CONAD Nº1, de 25 de Janeiro de 2010 sobre Normas e Procedimentos compatíveis com o uso Religioso da Ayahuasca:
ftp://ftp.saude.sp.gov.br/ftpsessp/bibliote/informe_eletronico/2010/iels.jan.10/iels16/U_RS-CONAD-1_250110.pdf

* Uma observação importante sobre a resolução é que quando se trata do "custo... partilhado no seio da instituição por meio das contribuições dos membros de cada entidade" refere-se não aos visitantes ou assistidos, mas aos membros que integram a entidade religiosa, logo, os que assumem a missão em conjunto dos dirigentes, entretanto, ainda assim é requerida a PRESTAÇÃO DE CONTAS regular pelas entidades.


Apesar disso tudo, não se tratando mais da Ayahuasca, ainda assim existe uma pequena "parte" do Xamanismo enquanto um fenômeno social (e não como culto/seita religiosa) que poderia ser utilizada num contexto profissional terapêutico, mas falaremos sobre isto mais adiante.

Saiba mais sobre o Xamanismo lendo a parte I e II:
I. Introdução Geral ao Xamanismo

II. Xamanismo e Bruxaria




Teve alguma dúvida? Em breve haverão mais textos explicando mais profundamente muitos dos conceitos aqui expressados, aguarde, comente sua dúvida (pois pode ser a de outros leitores), ou me envie um e-mail: vandanashakti@hotmail.com.

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